Sétimo dia de cobertura do 48o Festival de Cinema de Gramado com críticas dos curtas Trincheira e O Barco e o Rio e do longa King Kong en Asunción
Na última noite de filmes da mostra competitiva do Festival de Gramado transmitidos na TV pelo Canal Brasil nesta quinta-feira, foram exibidos apenas dois curta-metragens e um longa-metragem brasileiro. Infelizmente, o longa boliviano-americano Tu Me Manques, de Rodrigo Bellott, deixou de fazer parte da mostra de filmes estrangeiros.
A entrega das homenagens especiais se dá amanhã, sexta-feira dia 26, a partir das 20h, e a cerimônia de entrega dos Kikitos ocorre no sábado dia 27, às 21h, transmitida ao vivo pelo Canal Brasil e pelos canais digitais do festival. Agora, vamos aos filmes:
Trincheira
O curta alagoano Trincheira, de Paulo Silver, nos apresenta a um menino que passa o dia em um aterro de lixo e deixa a sua imaginação correr solta com o que encontra no meio da tralha descartada, usando um carrinho de supermercado para recolher o que pode ser útil para as suas brincadeiras, como jornais, aparelhos de TV quebrados, etc.
Através de uma montagem cuidadosa e uma direção de arte exemplar que cria um visual de fim de mundo quase apocalíptico contra um prédio de luxo ao fundo, nós o acompanhamos enquanto brinca solitário por entre pilhas de tijolos jogados, manequins abandonados e sucata de carros. Além disso, o som complementa o que vemos com ruídos estáticos e música eletrônica de video game, ajudando a nos inserir em sua imaginação.
Sem dividir a cena com mais ninguém, o ator-mirim Gabriel Nunes Xavier nos cativa com as brincadeiras do garoto, que vão desde fingir ser um comprador (no cartão de crédito) até ser um viajante intergalático. E é então que o curta toma um caminho Spielbergiano no melhor estilo de Histórias Maravilhosas e com direito a gráficos retrô divertidos. Nada de impressionante, mas é simpático e bem feito.
O Barco e o Rio
Já o curta amazonense O Barco e o Rio, de Bernardo Ale Abinader, nos mostra logo de cara o que quer dizer através de um diálogo entre duas irmãs, Vera e Josi, no barco que dividem em um porto de Manaus. Vera é religiosa e aparentemente reprimida, e Josi é festeira e quer vender o barco. A partir daí, o filme se entrega ao silêncio e momentos de reflexão em que as duas parecem envoltas em pensamentos.
Há elementos aqui e ali que buscam oferecer mais informação sobre essas mulheres e o relacionamento delas (como uma foto com um bilhete escrito no verso), mas o diretor parece confundir silêncio e ritmo lento com profundidade, e o resultado soa longo e não diz a que veio. No fim das contas, é mais um curta deste festival que dá a impressão de que o autor teve uma ideia mas não soube o que fazer com ela.
King Kong en Asunción
Finalmente, quando o longa King Kong en Asunción tem início, testemunhamos um sujeito idoso de cabelos e barbas brancas executar um homem com um tiro na cabeça no meio do Salar de Uyuni, o maior deserto de sal do mundo, localizado no sudoeste da Bolívia. Ao mesmo tempo que a bela fotografia explora o branco cegante da planície através de uma lente grande-angular e planos abertos que ressaltam o isolamento do que ocorre, o crime surge de forma seca e ousada, acompanhado de uma narração no idioma guarani que diz que “a memória é um percurso” e que não se absterá de opinar sobre o que veremos.
E se afirmo que esta é uma cena ousada, é porque nos apresenta o que há de pior em seu protagonista já de imediato — algo que na verdade poderia se revelar um tiro no pé e servir para alienar o espectador. No entanto, o filme e a cena em questão (e a distância com a qual ela é enquadrada) se beneficia justamente do fato de não termos conhecimento prévio algum do executado, permitindo que este seja visto apenas como uma vítima qualquer de um matador profissional que já deve ter matado muitos ao longo da vida e também não deve ter conhecimento íntimo de quem a pessoa seja.
Como logo percebemos, a proposta do diretor Camilo Cavalcante (do lindo A História da Eternidade) é explorar o peso da memória, da culpa e da efemeridade da vida a partir de um protagonista atormentado por seu passado — um personagem que nos remete aos anti-heróis do faroeste ao inclusive surgir como uma miragem desfocada no deserto e ao não ter esse seu passado revelado em detalhes. Apenas sabemos que “recolhe distâncias” (como aponta a voz narrante) de serviço a serviço e se afogando no álcool para não ser perseguido pelas lembranças (e cobranças) de suas vítimas.
Assim que recebe uma bela recompensa, o velho parte para Asunción, no Paraguai, com o desejo de rever a única mulher que amou (e que agora se encontra à beira da morte) e conhecer a filha que nunca viu. A partir daí, passamos a acompanhá-lo em uma jornada solitária e silenciosa por paisagens tão desoladas quanto o seu espírito. O ritmo adotado aqui é pausado, talvez buscando refletir aqueles momentos em que lembranças parecem querer vir à tona quando menos se espera.
No entanto, apesar de uma atuação dolorosa de Andrade Júnior, que nos comove com a insegurança e o olhar devastadoramente triste do personagem diante da possibilidade de encontrar sua filha (principalmente numa cena em que ensaia em frente ao espelho o que vai dizer a ela), essa melancolia soa um tanto rasteira. A montagem abusa de fusões, as paisagens se tornam cansativas, e mesmo as alusões a políticos — vivos, mortos ou assassinados pelo velho — surgem como reflexões tardias.
Muitos, aliás, são os elementos narrativos que parecem não servir de muita coisa, como os flashbacks pontuais que buscam explorar a ideia de uma violência cíclica mas que só se revelam desnecessários e mal explorados quando paramos para refletir com mais calma — assim como o próprio evento que dá nome ao filme.
Terminando com uma fala que não faz sentido algum depois de tudo que acompanhamos, King Kong en Asunción prova ser uma decepção — ainda que centrado em um protagonista complexo que merecia um filme melhor.