Ainda que tenha uma clara noção do que quer dizer, Malasartes e o Duelo com a Morte é uma bagunça sem graça e que sofre de um péssimo roteiro
Malasartes e o Duelo com a Morte (2017)
Escrito e dirigido por Paulo Morelli. Com Jesuíta Barbosa, Isis Valverde, Júlio Andrade, Milhem Cortaz, Leandro Hassum, Vera Holtz, Augusto Madeira, Luciana Paes, Julia Ianina, Giovanna Gold e Lima Duarte.
Prova de que não se tem como prever se um filme vai ser bom é assistir a algo como Malasartes e o Duelo com a Morte, do geralmente ótimo Paulo Morelli. Responsável (junto com seu filho Pedro) pelo belíssimo estudo de personagens Entre Nós (2013), desta vez o diretor resolveu ir na contramão daquela sua última obra com uma fantasia leve e que tinha tudo para dar certo, mas que infelizmente falha naquilo que tenta fazer.
Antes de mais nada, para os que não estão familiarizados, Pedro Malasartes é uma figura surgida das tradições portuguesas e que já deu origem a várias obras da cultura popular em Portugal e no Brasil, inclusive em literatura de cordel e filme de Mazzaropi. Como seu sobrenome indica, o personagem é apresentado como um sujeitinho astucioso, mentiroso, trapaceiro e escorregadio, adepto das “más artes” para se dar bem em cima dos outros. “Não vale o angu que come”, alguém diz. Aqui, ele é interpretado por Jesuíta Barbosa (Tatuagem, Praia do Futuro), que empresta um ar de moleque atrevido e inconsequente ao papel e ganha a nossa simpatia, o que por si só já é um ponto positivo.
Escrita por Morelli, a trama se assume logo de início como uma fantasia regionalista bem ao estilo de O Auto da Compadecida (2000), apresentando seus principais elementos narrativos em um prólogo animado em 2D que também entrega logo de cara a mensagem do filme, a da liberdade como maior desejo de todos os homens. Somos informados que a Morte (Júlio Andrade) se tornou responsável por ceifar as vidas dos mortais depois que roubou a vela que dava poder à Parca Cortadeira (Vera Holtz), aquela mesma da mitologia greco-romana que cortava o fio da vida dos mortais até uns 2000 anos atrás.
Cansado da obrigação, a Morte decidiu arranjar um substituto, alguém que fosse mais esperto que qualquer outro, e então apadrinhou o personagem-título, que adora trapacear os incautos e flertar com outras moças quando sua namorada Áurea (Isis Valverde) não está vendo. No dia do seu aniversário, enquanto aguarda a visita de seu padrinho, o rapaz sai fugido do irmão de Áurea, o agressivo Próspero (Milhem Cortaz), e vai parar dentro de um rio que o atira quase que literalmente para dentro da proverbial barriga da baleia — ou, neste caso, o mundo onde habita seu padrinho, a Morte.
É aí que vemos onde foi parar o investimento de R$ 4,5 milhões em efeitos visuais (de um orçamento total de R$ 9,5 milhões, até então o maior da história do cinema brasileiro). O resultado é bastante eficiente. O salão da Morte surge encravado em uma montanha cinza e enevoada concebida por computação gráfica, e vemos personagens flutuarem e serem erguidos por um mar de velas suspensas por longos fios (os fios da vida) que lembram uma gigantesca colônia de anêmonas-do-mar vistas de cima. A direção de arte também colabora com seus pilares e trono feitos de caveiras e ossos, bem como a fotografia cinza e dessaturada que se contrapõe ao visual tomado de mais cores do mundo dos vivos.
Mas a estética de Malasartes e o Duelo com a Morte não consegue compensar um roteiro péssimo e cheio de problemas. Primeiro, há um excesso irritante de diálogos expositivos e óbvios (“Esse homi além de ladrão é desonesto” é uma divertida exceção que realmente me fez rir). Ao perguntar onde se encontra logo que chega ao outro lado, por exemplo, Malasartes recebe a mais besta das respostas de Esculápio (Leandro Hassum), o ajudante da Morte que beira o insuportável: “Aqui é outro mundo.” Cê jura.
Aliás, as três Parcas (a Cortadeira e as outras duas, que tecem e medem os fios) passam quase o filme inteiro falando umas para as outras aquilo que todas já sabem e da forma mais mastigada possível para não deixar ninguém do lado de cá em dúvida. Por exemplo: “Fala isso porque não foi você que perdeu o emprego de cortar os fios da vida.” E quando elas finalmente dizem algo que pode vir a ser útil, a informação não leva a lugar algum, como ocorre com um plano de deixar uma sobra de fios pro Malasartes mais tarde.
Além disso, o personagem da Morte é uma bagunça por si só. Seu plano de convencer Malasartes a roubar sua vela é bem mais complicado do que deveria ser, envolvendo três dons de cura que parecem só inflar uma trama pobre. Inclusive, não entendo por que ele inicialmente insiste que o garoto troque as velas, em uma subestimação gritante da inteligência daquele que apadrinhou (e o fez justamente por ele ser supostamente o mais esperto dos mortais), deixando o malandro obviamente com a pulga atrás da orelha.
Afinal, se o tal estrupício está de saco cheio do que faz, por que não devolve a vela para a Cortadeira e se vê livre? No entanto, por mais que insista no narcisismo do personagem, o filme não consegue nos convencer de que isso seria o suficiente para justificar suas motivações, chegando ainda ao ponto de incluir um transtorno dissociativo de identidade que o faz parecer o Gollum, falando consigo mesmo na primeira pessoa do plural. Pior ainda é a resolução final do filme, quando uma personagem à beira da morte se salva sem a menor explicação depois de um clímax que parece não ter servido de nada.
E é uma pena, porque Malasartes e o Duelo com a Morte parece ter uma noção bem clara do que quer dizer (todo o lance sobre destino versus liberdade e por aí vai). O problema é que o filme se enrola todo. Como se não bastasse, a direção de Morelli também peca por quase não nos fazer rir (e o filme é uma comédia afinal). Por sinal, o humor é bem tolo e pueril. E se o resto do elenco faz o melhor com o pouco que tem, Leandro Hassum está sem graça e irritante como sempre, ainda que não seja fácil conseguir fazer rir com um personagem idiota que tem dificuldade em pronunciar ‘maquiavélico’ e ‘degraus’.
Assim, excetuando-se uma coisinha ou outra (o nome José Cândido Voltaire e a vela da cor roxa geralmente associada à morte, por exemplo, são detalhes inspirados), a verdade é que o resultado é uma bagunça frustrante. E isso é uma pena, porque com um tema tão curioso e efeitos especiais tão bacanas, poderia ter rendido um ótimo filme.