Com o envolvente Deserto Particular, Aly Muritiba discute identidade através de um romance atípico que surpreende de diversas maneiras

Deserto Particular (filme)

Deserto Particular (2021)

Diri­gi­do por Aly Muri­ti­ba. Escri­to por Aly Muri­ti­ba e Hen­ri­que dos San­tos. Com Anto­nio Saboia, Pedro Fasa­na­ro, Tho­mas Aqui­no, Zezi­ta Matos, Cynthia Senek, Lai­la Garin, San­dro Guer­ra, Luthe­ro de Almei­da e Flá­vio Bauraqui.

Quem conhe­ce o cine­ma do bai­a­no Aly Muri­ti­ba já deve saber que difi­cil­men­te vai se depa­rar com o óbvio ao assis­tir a um de seus fil­mes. Em seu dolo­ro­so Para Minha Ama­da Mor­ta (2015), por exem­plo, o cine­as­ta opta­va por cons­truir uma explo­ra­ção inti­mis­ta do luto e do ran­cor em vez de entre­gar o thril­ler catár­ti­co que mui­tos pro­va­vel­men­te espe­ra­ri­am de sua pre­mis­sa. Pois é algo seme­lhan­te que ocor­re com este Deser­to Par­ti­cu­lar, que ini­ci­al­men­te pare­ce que­rer seguir um cami­nho mais dire­to e con­ven­ci­o­nal ape­nas para se ver arre­mes­sa­do em dire­ções ines­pe­ra­das a cada novo momen­to, sur­pre­en­den­do tam­bém pela lin­gua­gem atra­vés de um inte­res­san­te empre­go de cores.

Escri­to por Muri­ti­ba ao lado de Hen­ri­que dos San­tos, Deser­to Par­ti­cu­lar tem como pro­ta­go­nis­ta o poli­ci­al Dani­el Morei­ra (Anto­nio Saboia), que está afas­ta­do da cor­po­ra­ção enquan­to aguar­da jul­ga­men­to após agre­dir um recru­ta duran­te o trei­na­men­to de ofi­ci­ais. O iní­cio do fil­me nos apre­sen­ta a sua vida sem rodei­os. Dani­el mora com o pai ido­so e senil, um poli­ci­al apo­sen­ta­do, cui­dan­do e dan­do banho nele, e recu­san­do-se a inter­ná-lo em uma clí­ni­ca como ten­ta con­ven­cê-lo sua irmã mais nova. Vemos tam­bém um ter­ço enor­me em uma pare­de do quar­to do velho, o que nos diz o sufi­ci­en­te sobre aque­la famí­lia. Além dis­so, Dani­el man­tém um rela­ci­o­na­men­to vir­tu­al com uma eté­rea mulher de nome Sara, que pare­ce lhe suprir uma carên­cia que ele com­pa­ra à pró­pria fal­ta de ar.

Dota­do de uma atra­en­te bele­za que cha­ma a aten­ção com um cor­po nor­mal sem mús­cu­los sal­ta­dos (como vemos em um sucu­len­to nude), e encar­nan­do Dani­el com uma inten­si­da­de pre­ci­sa e de pou­cas pala­vras, Saboia per­mi­te que per­ce­ba­mos a cres­cen­te frus­tra­ção do per­so­na­gem dian­te de um silên­cio que não con­se­gue com­pre­en­der. Nes­se sen­ti­do, fica paten­te que Dani­el é um homem de visão car­te­si­a­na, já que nem nota a apa­ren­te inten­ção do pai de aca­bar com a pró­pria vida em deter­mi­na­do momen­to, demons­tran­do tam­bém ser con­ser­va­dor e aves­so a mudan­ças — como quan­do pre­vê frus­tra­ção cer­ta para a irmã que dese­ja mudar de pro­fis­são, além de ficar visi­vel­men­te inco­mo­da­do ao ouvi-la admi­tir que está em um rela­ci­o­na­men­to amo­ro­so com uma mulher.

E a dúvi­da ape­nas inten­si­fi­ca uma for­te inqui­e­ta­ção: por que Sara não res­pon­de mais às suas men­sa­gens afi­nal? A prin­cí­pio até ima­gi­na­mos que a moça nem sequer exis­ta, ou que Dani­el seja na ver­da­de um stal­ker per­se­guin­do algu­ma coi­ta­da incau­ta (o que não seria difí­cil, con­si­de­ran­do seu his­tó­ri­co de trans­gres­são éti­ca). Mas logo per­ce­be­mos não ser esse o caso, quan­do vemos uma men­sa­gem de vídeo em que ela apa­re­ce banha­da de um inten­so ver­de — ver­de esse que, vere­mos, pas­sa­rá a ser visu­al­men­te asso­ci­a­do a ela. E é então que, exi­bin­do a mes­ma impul­si­vi­da­de que arre­mes­sou a sua vida para o alto, Dani­el se joga na estra­da em sua cami­nho­ne­te, par­tin­do de Curi­ti­ba rumo a Sobra­di­nho, na Bahia, numa ten­ta­ti­va deses­pe­ra­da de encon­trar a ama­da silenciosa.

A par­tir daí, a nar­ra­ti­va — que até esse pon­to vinha bus­can­do se apro­xi­mar do natu­ra­lis­mo uti­li­zan­do somen­te sons die­gé­ti­cos, sem qual­quer músi­ca, e com uma pale­ta mais azu­la­da para subli­nhar a fri­e­za do quo­ti­di­a­no de Dani­el — dá a sua pri­mei­ra gui­na­da ines­pe­ra­da, final­men­te apre­sen­tan­do o títu­lo do fil­me após lon­gos 30 minu­tos de todo esse con­tex­to (e ao som de músi­ca) para ado­tar um cará­ter de qua­se road movie. O que se segue é uma cla­ra mudan­ça na abor­da­gem con­for­me vemos os ambi­en­tes de Sobra­di­nho pon­tu­al­men­te ilu­mi­na­dos de um ver­de vibran­te que pare­ce sina­li­zar a pre­sen­ça cada vez mais pró­xi­ma de Sara, ou ape­nas refle­tir a oni­pre­sen­ça da mulher nos pen­sa­men­tos de Dani­el, fazen­do da cida­de o cená­rio de uma qua­se fábu­la urbana.

Mais adi­an­te, o fil­me vol­ta a nos sur­pre­en­der ao dire­ci­o­nar seu foco a outro per­so­na­gem, Rob­son (Pedro Fasa­na­ro), igual­men­te apre­sen­ta­do de manei­ra econô­mi­ca em sua roti­na desa­len­ta­do­ra. Ain­da com o ros­to cheio de espi­nhas, labu­ta todo dia com car­ga e des­car­ga de mer­ca­do­ri­as, mora com a avó caro­la, com quem vai orar em voz alta na igre­ja, e tem a pare­de do quar­to reple­ta de fotos de luga­res que sonha um dia conhe­cer mun­do afo­ra. E tam­bém escon­de sua tran­se­xu­a­li­da­de em uma cida­de que não pode saber. O ver­de sur­ge sem­pre pre­sen­te em suas rou­pas e na dire­ção de arte, como se expu­ses­se a sua inca­pa­ci­da­de de escon­der quem real­men­te é, até mes­mo indi­can­do a sua dis­cre­ta pre­sen­ça na bar­ca em que Dani­el via­ja com Fer­nan­do (Tho­mas Aqui­no) para Petrolina.

Além dis­so, é inte­res­san­te per­ce­ber que, enquan­to o ver­de suge­re algo de oní­ri­co, como uma mate­ri­a­li­za­ção dos sonhos român­ti­cos de Dani­el na figu­ra des­sa mulher ama­da, o ver­me­lho (opos­to com­ple­men­tar do ver­de) é empre­ga­do aqui como for­ma de pro­vo­car uma sen­sa­ção de estra­nhe­za e ten­são, tan­to na pri­mei­ra vez que Dani­el vê Sara ao vivo quan­to mais tar­de quan­do Dani­el vai com Rob­son bus­car um ves­ti­do na casa de Fer­nan­do — e é lin­do notar como a luz que recai sobre o cor­po de Sara nes­sa cena aca­ba por “tin­gir” o ves­ti­do azul de ver­de, for­çan­do Dani­el a acei­tar que aque­la é de fato a Sara dos seus sonhos e não uma men­ti­ra (algo rea­fir­ma­do pelo fato de Rob­son con­ti­nu­ar a falar com a “voz” de Sara mes­mo após des­co­ber­ta a verdade).

Fun­ci­o­nan­do como uma espé­cie de M. But­ter­fly bra­si­lei­ro, Deser­to Par­ti­cu­lar ain­da nos sur­pre­en­de por seus poé­ti­cos diá­lo­gos, espe­ci­al­men­te em uma bela cena dian­te de um lago quan­do vemos os dois per­so­na­gens se ques­ti­o­na­rem sobre fé e iden­ti­da­de, os gran­des dile­mas que os unem e os sepa­ram. E é por con­ter tan­tas ver­da­des que mes­mo um roman­ce de nove­la ao som de Total Eclip­se of the Heart e com data de expi­ra­ção per­ma­ne­ce­rá com eles para sem­pre, aon­de quer que a estra­da os leve.

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