Potente e inspirador como sua protagonista, Indianara representa por si só um belíssimo ato de resistência contra aqueles que querem silenciá-la
Indianara (2019)
Dirigido por Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel. Escrito por Marcelo Barbosa, Aude Chevalier-Beaumel e Michele Frantz.
Há uma imagem logo no início do documentário Indianara que diz muito sem precisar de palavras. Nela, vemos a personagem-título — a ativista LGBTQI+ Indianara Siqueira — no enterro de mais uma companheira assassinada ao lado de apenas uma meia dúzia de outras sobreviventes transgênero e travestis. Algumas covas encontram-se abertas diante delas, como se aguardassem as próximas vítimas dessa transfobia endêmica que faz do Brasil um dos países que mais maltratam e matam transexuais no mundo inteiro. E as poucas pessoas ali presentes ainda passam a triste impressão de uma comunidade que mingua a cada dia até cedo ou tarde se extinguir junto com os seus poucos direitos.
É através de momentos como esse que constatamos o poder do cinema direto, que busca capturar o que há de mais próximo da realidade a partir da simples observação, sem que os cineastas interajam com o que se desenrola diante das câmeras. O que os diretores Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel fazem é deixar as imagens falarem por si, eliminando assim a interferência de narrações, cabeças falantes ou mesmo descrições que surjam escritas na tela. O efeito é o da mosca na parede, que nos permite acompanhar de maneira quase invisível a realidade de Indianara, ativista transexual que liderou diversas manifestações e fundou a Casa Nem como um abrigo para a população LGBTQI+.
Assim, testemunhamos desde conversas e desentendimentos que acabam surgindo no abrigo abarrotado de gente até as várias manifestações pelos direitos de minorias em que Indianara participa ao longo da produção do filme. Conhecemos e dividimos seus sonhos e temores, suas convicções e tristezas, em momentos que dispensam legendas. No centro disso tudo está o poder de gerar empatia que torna este estilo de documentário tão eficaz, especialmente à medida que descobrimos aqui uma pessoa de carne e osso como qualquer outra, com suas qualidades e defeitos — e é lindo, aliás, ver que uma discussão feia com o namorado Maurício só revela um lado seu mais real e humano.
Além disso, o filme é um retrato louvável dos esforços de Indianara para manter o abrigo de pé mesmo diante das dificuldades que surgem, como um aviso de despejo e a gestão bagunçada que acaba gerando conflito entre as moradoras. E percebemos o lado materno e generoso da documentada, que não só permite que as outras não paguem nada para ficar lá (só precisando ajudar na limpeza e na manutenção do lugar), mas também ensina as analfabetas a ler e até acolhe transexuais vindas de outros países da América Latina. A sensação, reforçada por uma cena descontraída em uma piscina improvisada, é a de uma família que faz o que pode para ser feliz e superar as inúmeras adversidades.
Mais admirável, porém, é ainda o furor potente que move Indianara a ir às ruas brigar por pautas progressistas e para que mulheres e pessoas LGBTQI+ se vejam livres das muitas amarras impostas por uma sociedade de homens que se esforça para controlá-las e mandar em seus corpos (“Nem Deus, nem estado, nem marido, nem patrão”, é a sua máxima, que diz tudo sobre ela). Nesse sentido, o modo observacional do filme merece todo o crédito por lhe ceder a fala de forma quase exclusiva, encontrando uma ênfase perfeita num determinado momento em que um homem cis resolve querer falar por ela em plena manifestação e uma mulher protesta com veemência: “Você é travesti?”
Indianara se torna então o grito de uma guerreira que tampouco se abstém de questionar as posturas duvidosas do próprio partido na época, o PSOL, que se opôs a ela e atacou as ocupações de prédios abandonados. No entanto, se há uma questão principal levantada no documentário, é o medo e o perigo constantes que transexuais e travestis enfrentam no dia-a-dia de suas vidas, o que nos traz de volta ao ponto mencionado no início deste texto. Isso é algo que podemos observar tanto em sutis detalhes (como uma contagem de moradoras) quanto no desespero que surge mais adiante com o assassinato da vereadora Marielle Franco e a eleição do neo-fascista Jair Bolsonaro a presidente.
Para comunidades marginalizadas e perseguidas como a de Indianara, essas vitórias da extrema-direita no país são uma ameaça às suas próprias existências — uma questão que é inclusive verbalizada de maneira arrebatadora em um monólogo sobre a matança de travestis e articulada por alguém que soa como uma verdadeira profeta dos últimos dias. À medida que esse perigo se intensifica e a ativista se vê forçada a instalar câmeras de segurança por toda sua casa, é inspirador ver que o seu “quilombo urbano de resistência” encontra na última imagem do filme um grito silencioso de quem resiste até o fim.