Sem medo de afastar um público que esteja atrás de conflitos e resoluções fáceis, Mar de Dentro é um retrato intimista e sincero da maternidade
Mar de Dentro (2020)
Dirigido por Dainara Toffoli. Escrito por Elaine Teixeira e Dainara Toffoli. Com Monica Iozzi, Rafael Losso, Gilda Nomacce e Magali Biff.
A primeira coisa que salta aos olhos em Mar de Dentro é que o filme possui uma estrutura bem mais simples do que geralmente se espera de uma narrativa com uma temática como a sua. Se por um lado isso pode fazê-lo parecer “pobre” em termos de plot (o que deverá frustrar muitos dos espectadores que estiverem em busca de conflitos e viradas clássicos, como a presença de vilões, decisões chaves, e por aí vai), por outro acaba se revelando uma escolha inteligente e acertada por parte da diretora Dainara Toffoli, que encontra seu foco justamente naquilo que costuma ser ignorado (e de maneira injusta, por sinal) como o que há de mais prosaico na questão aqui explorada.
Escrito pela diretora ao lado de Elaine Teixeira a partir de sua própria experiência com a maternidade, Mar de Dentro nos apresenta a Manuela (Monica Iozzi), uma publicitária bem sucedida que tem um relacionamento amoroso com o colega de trabalho Beto (Rafael Losso) e descobre estar grávida. Apesar de inicialmente cogitar a possibilidade de um aborto, já que uma criança não faz parte de seus planos, Manuela é convencida por Beto de que poderão criá-la juntos, o que a leva a adiar a sua decisão até finalmente aceitar viverem uma vida a três. Porém, após uma tragédia, ela se vê obrigada a lidar sozinha com sua nova situação de mãe e com as mudanças em seu corpo e sua vida.
Através de uma abordagem naturalista e dardenniana que evita floreios estéticos ou de linguagem, Toffoli busca manter o seu foco principal no roteiro, criando uma experiência que se assemelha a assistir a um documentário observacional sobre as duras penas da maternidade. Nesse sentido, o roteiro linear e direto nem se preocupa em entrar em detalhes a respeito do relacionamento dos dois personagens ou mesmo se usaram algum método contraceptivo, pois de fato pouco disso importa. Vemos que Manuela é uma mulher independente, que gosta da sua independência, e isso é o bastante para que a compreendamos as dificuldades que ela passa a enfrentar.
Assim, Mar de Dentro se estrutura em torno de uma série de processos cruciantes na vida de Manuela. Primeiro, seu corpo começa a sofrer o impacto da gravidez, com dores, enjoos e um descolamento do saco gestacional que a impossibilitam de trabalhar por uma semana. Depois, vem um um período árduo de depressão ocasionada pelo luto, além do incômodo que é dormir por meses com uma barriga enorme que não para de crescer, e mais tarde o doloroso parto, seguido do processo ainda mais dificultoso de cuidar sozinha de um bebê que chora o tempo todo e necessita de atenção constante.
Fica claro que nada disso é simples como parecem querer defender os que se opõem à legalização do aborto. Mas o filme não prega, apenas mostra. “Filho é pra sempre né”, diz Manuela ciente do que a aguarda pela frente. No centro da narrativa está o seu corpo, e a atriz Monica Iozzi retrata com sensibilidade e naturalidade as frustrações e os receios da personagem sem jamais fazê-la soar egoísta ou negligente, já que a moça demonstra suficiente afeto e amor por Beto e por seu bebê ainda que também valorize a sua carreira profissional e busque maneiras de conciliar os vários aspectos da sua vida.
Tudo o que Manuela quer é ter a sua vida de volta (ou alguma parte dela), e o filme nos leva a compreender o seu desejo de voltar a fazer o que lhe dá prazer, como sair sozinha para dançar forró e pegar algum cara em um bar. Mesmo quando a vemos agir de forma questionável (fumando maconha ou bebendo cerveja grávida), é difícil resistir à tentação de dizer que deixem a mulher viver em paz e ter um pouco de felicidade. O mar do título (que surge como contraponto simbólico ao aquário de Beto) está dentro dela, revirado por uma tormenta que muitos repreendem mas poucas entendem.
Além disso, representando a visão conservadora do que Manuela deve ou não fazer com o seu corpo, temos os pais de Beto, carolas de igreja que se surpreendem ao ouvir que a personagem está indo trabalhar (“Quem vai cuidar do meu neto?”, pergunta o chocado avô), mas que não dão as caras quando ela dá à luz (sozinha) no hospital. São pequenos detalhes esses, sutis, que revelam muito sobre como há sempre alguém fora da relação mãe-e-filho a meter o dedo e dizer como as coisas devem ser, mesmo quando é apenas a mãe quem carrega a criança no ventre, amamenta e vê seu corpo inchar.
E ainda, se em um determinado instante notamos o olhar de julgamento que uma babá lança em relação às decisões de Manuela, encontramos só beleza numa cena doce (e que grita sororidade para quem quiser ouvir) em que a protagonista dá carona à sua outra babá que trabalha à noite cuidando de outro bebê que não o dela própria. E é aí que Mar de Dentro, que evita exposição e conflitos fáceis ao máximo, demonstra mais uma vez que sua força reside precisamente em seus momentos de intimidade e silêncio.