O Homem Que Copiava desafia expectativas ao lançar um olhar divertido e mordaz aos sonhos de mobilidade social de um jovem operador de fotocopiadora
O Homem Que Copiava (2003)
Escrito e dirigido por Jorge Furtado. Com Lázaro Ramos, Leandra Leal, Luana Piovani, Pedro Cardoso, Júlio Andrade, Carlos Cunha Filho e Paulo José.
Um dos maiores prazeres que o cinema nos oferece é o de experienciar histórias que a maioria de nós hesitaria vivenciar na vida real. Através de uma tela com imagens em movimento, somos levados a acompanhar personagens dos mais diversos, com seus defeitos e qualidades; heróis e anti-herói, pessoas que consideramos nobres ou donas de um caráter duvidoso. Dividimos nosso tempo com quem muitos de nós condenaríamos se conhecêssemos de fato mas por quem torcemos em narrativas ficcionais graças à empatia que desenvolvemos por elas e por suas histórias — embora, claro, não sejam todas as histórias que consigam nos envolver a tal ponto e da mesma maneira.
Com O Homem Que Copiava, o diretor gaúcho Jorge Furtado nos atira para dentro de uma narrativa em que muito do que ele mostra é relativo e passível de uma nova leitura. Não é à toa, aliás, que em um determinado momento vemos um painel publicitário em que se vê escrito “Você é o que você lê” acima do título do clássico romance russo Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski — que surge como um verdadeiro totem representativo do que se espera de um conto de transgressão moral e suas consequências. O que lemos do filme revela bastante sobre nós mesmo, e o diretor parece brincar com isso à medida que torce e retorce as possibilidades daquilo que nos apresenta.
Furtado busca colocar o espectador o mais próximo possível de seu protagonista, André (Lázaro Ramos), um frustrado operador de fotocopiadora que trabalha em uma lojinha de bricabraque em Porto Alegre e sonha acordado o dia todo com uma vida de fama e riqueza como ilustrador. Assim, ouvimos André em uma constante narração em off que segue o fluxo desgovernado de seus pensamentos e divaga sobre uma série de assuntos relevantes e aleatórios, desde elementos de sua vida quotidiana a alusões repentinas à esposa gorda de um presidente ou a uma santa decapitada, por exemplo.
Vemos também vários dos seus pensamentos surgirem como se seguissem a lógica de suas ilustrações, pipocando na tela em formato de animação, desenhos de TV, quadrinhos e colagens que remetem a outro trabalho do diretor, o genial Ilha das Flores (1989). Além da trilha de drum and bass (que inclui ruídos de fotocopiadora), a montagem acelerada contribui para esse ritmo um tanto esquizofrênico, fazendo uso de muitos planos detalhes e cortes rápidos que funcionam ainda para criar elipses temporais (reconhecíveis pelas diferenças de roupas) e nos fazer compartilhar a maneira obsessiva como André espiona Silvia (Leandra Leal), a vizinha do prédio da frente, com seus binóculos.
Além disso, Furtado mantém a câmera geralmente colada ao rosto de André e um pouco mais afastada dos outros personagens, forçando a nossa identificação com o personagem. O resultado se assemelha a uma narrativa em primeira pessoa, algo também ressaltado pelos planos subjetivos voyeurísticos e por elementos saídos do seu próprio raciocínio — como os fragmentos das cópias de textos alheios que lhe fornece informações acidentais ou a junção lado a lado de imagens refletidas em um espelho que ele organiza em sua mente para ter uma visão completa do quarto de Silvia.
Da mesma maneira, vemos as ilusões e os sonhos de André representados em tela. São os seus sonhos de mobilidade social (e de conseguir conquistar a Silvia) que nos levam a perdoar as suas ações, mesmo à medida que estas se tornam cada vez mais moralmente questionáveis. Eficaz nesse sentido, O Homem Que Copiava se beneficia de uma atuação sensível de Lázaro Ramos, que compõe André como um jovem tímido e sagaz o suficiente para saber usar o que aprendeu da TV e das cópias que fez no trabalho (como ao distrair uma atendente de uma casa lotérica) mas ingênuo o bastante para crer que mesmo suas ações mais doidas podem dar certo, ganhando com isso a nossa simpatia.
Outra que também impressiona é Leandra Leal como Silvia, o interesse amoroso de André que conhecemos pelos olhos encantados do rapaz e com quem simpatizamos por conta da boa química entre os dois. E se somos convencidos de certas decisões surpreendentes da garota mais à frente, é porque a atriz faz um ótimo trabalho. Além dos dois, outros que criam personagens marcantes são a Luana Piovani, como a boazuda virgem Marinês que trabalha com André, e Pedro Cardoso, como o divertido sujeito disposto a levá-la para a cama. Todos, por sinal, alinhados com o humor irônico e frenético do filme.
E é a partir da sua metade que O Homem Que Copiava passa a ousar ainda mais, através de montagens paralelas e ao investir em situações que pendem cada vez mais pro lado do surreal, com direito à presença de uma galinha e um prêmio de loteria. Não só acabamos por torcer por pessoas que afrontam as normas do moralmente aceitável (inclusive um personagem negro que dispara uma arma contra alguém), mas quaisquer expectativas e leituras que o espectador possa ter são igualmente desafiadas à medida que uma série de revelações inesperadas surge para ressignificar o que vimos até então.
Afinal, o que lemos e interpretamos de uma obra narrativa fala muito sobre como enxergamos a vida e o mundo ao nosso redor, e o que este filme parece sugerir é que precisamos expandir o nosso campo de visão e usar da nossa capacidade de empatia para compreender melhor o próximo. Porque talvez nem todo esforço feito para escapar da mesmice de uma vida sem graça mereça ser recompensada com castigo.