Em mais uma bela reavaliação histórica, Lúcia Murat contrasta um passado opressivo com um presente que tem muito ainda o que aprender

Ana. Sem Título (filme)

Ana. Sem Título (2020)

Diri­gi­do por Lúcia Murat. Escri­to e diri­gi­do por Tati­a­na Salem Levy e Lúcia Murat. Com Stel­la Rabel­lo, Feli­pe Rocha, Rena­to Linha­res, Lucas Cana­var­ro, Rober­ta Estre­la D’Al­va, Wal­do Fran­co, Mir­ta Bus­nel­li, María Fio­ren­ti­no, Mau­ri­cio Gar­cía Loza­no e Con­cep­ción Márquez.

A cine­as­ta cari­o­ca Lúcia Murat não é nenhu­ma lei­ga no que diz res­pei­to a encar­ce­ra­men­to e tor­tu­ra duran­te a dita­du­ra mili­tar no Bra­sil. Aliás, foram as suas pró­pri­as expe­ri­ên­ci­as de três anos e meio atrás de gra­des que a impul­si­o­na­ram a rea­li­zar a impac­tan­te obra de docu­fic­ção Que Bom Te Ver Viva em 1989, que espe­ci­al­men­te denun­ci­a­va as atro­ci­da­des come­ti­das con­tra mulhe­res naque­le infa­me perío­do da his­tó­ria do país. Pois des­ta vez a vete­ra­na dire­to­ra nos traz a este novo híbri­do docu­men­tá­rio-fic­ção Ana. Sem Títu­lo, que lan­ça mais um olhar sobre as lesões psi­co­ló­gi­cas e emo­ci­o­nais dei­xa­das em mulhe­res que ousa­ram lutar con­tra regi­mes opres­so­res e criminosos.

Livre­men­te ins­pi­ra­do na peça “Há Mais Futu­ro Que Pas­sa­do”, de Dani­e­la Avi­la Small, o rotei­ro de Murat e Tati­a­na Salem Levy uti­li­za a expo­si­ção “Mulhe­res radi­cais: arte lati­no-ame­ri­ca­na, 1960–1985″, apre­sen­ta­da em 2018 na Pina­co­te­ca de São Pau­lo, como pon­to de par­ti­da para uma dis­cus­são sobre a luta e a arte de mulhe­res lati­no-ame­ri­ca­nas que fize­ram o que podi­am para con­ti­nu­ar a cri­ar mes­mo sob ame­a­ça da inten­sa repres­são inte­lec­tu­al que ocor­ria em seus paí­ses na épo­ca. Para tan­to, a dire­to­ra acom­pa­nha a atriz bra­si­lei­ra Ste­la, que está rea­li­zan­do um tra­ba­lho em cima das car­tas que eram tro­ca­das entre essas artis­tas plás­ti­cas nas déca­das de 1970 e 1980.

Ste­la fica mais intri­ga­da ao se depa­rar com uma elu­si­va per­so­na­gem de nome Ana (sem sobre­no­me), que desa­pa­re­ceu sem dei­xar ras­tros e é cita­da em diver­sas das car­tas como uma mulher valen­te, talen­to­sa e extra­or­di­ná­ria. É então que a atriz deci­de par­tir em uma jor­na­da atrás do seu para­dei­ro, para des­co­brir quem ela foi, por que aban­do­nou a arte, onde se encon­tra, e se ain­da está viva. Atra­vés da bus­ca de Ste­la, a cine­as­ta, que vez ou outra sur­ge dian­te da câme­ra pon­tu­an­do as suas pró­pri­as moti­va­ções, afir­ma estar em bus­ca de sua gera­ção tam­bém. Duas bus­cas se cru­zam e se com­ple­men­tam — uma real e uma fic­tí­cia — levan­do as duas artis­tas a uma via­gem pelo passado.

No cen­tro de Ana. Sem Títu­lo está o que a per­so­na­gem-títu­lo repre­sen­ta como víti­ma de dita­du­ra. Pre­ta e cri­a­da no sul do Bra­sil, Ana é des­cri­ta como uma artis­ta mul­ti­fa­ce­ta­da e que tran­si­ta­va pelas artes plás­ti­cas, dese­nho, pin­tu­ra e até per­for­man­ce. Seu “cri­me” não era ser par­ti­dá­ria ou comu­nis­ta, mas que­rer trans­gre­dir regras e ser livre. Atra­vés da figu­ra de Ana (que, assi­nan­do só “Ana”, se tor­na qua­se um íco­ne), o fil­me explo­ra o pre­con­cei­to (raci­al e sexu­al) pou­co lem­bra­do dos regi­mes fas­cis­tas lati­no-ame­ri­ca­nos, encon­tran­do um para­le­lo atu­al em Andres­sa, úni­ca da equi­pe para­da no aero­por­to e ques­ti­o­na­da por cin­co homens duran­te horas ape­nas pelo fato de ser negra.

Mas o fil­me não para por aí, e é na jor­na­da de Ste­la por Cuba, Méxi­co, Argen­ti­na e Chi­le e de vol­ta ao Bra­sil em bus­ca do fan­tas­ma de Ana que a dire­to­ra tam­bém dis­cu­te o lega­do de artis­tas como Anto­nia Eiriz, María Lui­sa Bem­berg e Kati Hor­na, além de outras que tive­ram seus tra­ba­lhos expos­tos na mos­tra. E como se não bas­tas­se, o fil­me tam­pou­co se detém no poder da cri­a­ti­vi­da­de como fer­ra­men­ta de mudan­ça soci­al e ain­da faz um apa­nha­do de even­tos devas­ta­do­res que mar­ca­ram a his­tó­ria, como o mas­sa­cre de Tla­te­lol­co, no Méxi­co, em 1968, que levou à mor­te de 300 pes­so­as, e o bom­bar­de­a­men­to do Palá­cio de la Mone­da, no Chi­le, que matou o pre­si­den­te Sal­va­dor Allen­de em 1973.

É nes­se encon­tro de res­ga­te gera­ci­o­nal e regis­tro his­tó­ri­co que o fil­me reve­la a sua for­ça, sur­gin­do tal qual um docu­men­tá­rio genuí­no ao com­bi­nar de manei­ra qua­se indi­fe­ren­ciá­vel ima­gens de arqui­vo reais com fic­tí­ci­as, de cores, tex­tu­ras e fon­tes diver­sas, inclu­si­ve per­for­man­ces de arte arre­ba­ta­do­ras de Ana. Nes­se aspec­to, vale res­sal­tar como a dire­ção de Murat demons­tra tam­bém um inte­li­gen­te con­ca­te­na­men­to de idei­as ao alter­nar entre duas entre­vis­tas que se com­ple­men­tam em um deter­mi­na­do momento.

Assim, além de cul­mi­nar em uma cena final pode­ro­sa, Ana. Sem Títu­lo ain­da pro­va que a fic­ção pode ser mais ver­da­dei­ra que os fatos por con­se­guir explo­rar tan­tas face­tas de uma rea­li­da­de e ain­da per­mi­tir, ao fim, que o públi­co tire suas pró­pri­as conclusões.

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