Quinto dia de cobertura do 48o Festival de Cinema de Gramado com críticas dos curtas Dominique e Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé e dos longas Aos Pedaços e Matar a un Muerto
Dominique
O quinto dia do Festival de Gramado nos apresenta a Dominique, uma moça transgênero que nos fala de sua vida em uma pequena ilha situada na foz do rio Amazonas, no Pará, enquanto a acompanhamos rumo à casa de sua mãe. Neste curta documental, ouvimos sobre sua infância religiosa, sobre como começou a tomar hormônios já aos 13 anos de idade, sobre ter morado com um tio gay conservador e transfóbico, sobre ter ido parar na prostituição, além da curta expectativa de vida das transsexuais em geral.
Através de um breve mas tocante relato, somos levados a conhecer mais sobre pessoas que só encontram espaço à margem da sociedade, uma vez que poucos lhes dão emprego mesmo com um diploma universitário, fazendo da prostituição uma alternativa inevitável para elas. Também conhecemos a mãe de Dominique, que tem outras duas filhas trans e fala de sua tolerância e aceitação apesar de uma origem humilde — o que deveria servir de exemplo para quem tem um mínimo de estudos e não faz o mesmo.
Interessante ao mencionar (mesmo que por alto) o preconceito que certas mulheres trans têm de travestis menos femininas em sua aparência (o que revela muito sobre como que a cultura de gênero binário está entrenhada na mente coletiva), Dominique é um filme de boas intenções, mas que acaba soando um tanto superficial, o que é uma pena, já que fica a vontade de ouvir mais o que a sua brava protagonista tem a dizer.
Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé
O já falecido pai de santo candomblecista Joãozinho da Goméia era visto como uma figura polêmica dentro do próprio candomblé, onde os puristas nagôs o acusavam de blasfêmia e de desmoralizar a religião com sua homossexualidade escancarada, seus ritos afrontosos e suas indumentárias e enfeites quase carnavalescos. Neste curta documental carioca Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé, de Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra, ouvimos a voz do próprio documentado em antigas gravações de áudio enquanto vemos o ator Átila Bezerra interpretá-lo em danças e performances corporais.
As imagens de arquivo reunidas aqui incluem desde notícias de jornais da época até fotos de Joãozinho e uma cena do filme Copacabana, Mon Amour (1970), de Rogério Sganzerla, em que ele aparece. E vemos o Joãozinho interpretado por Bezerra nos mostrar algumas peças das indumentárias dos santos que ele cultuava, além de closes de seu corpo, como que numa tentativa de apreendê-lo por completo.
Infelizmente, é só isso que o curta parece ter a nos oferecer: breves vislumbres de quem Joãozinho era. Ao final da projeção, ficamos com a sensação de que o conhecemos quase tanto quanto antes. O resultado é de uma pobreza que não precisava ser.
Aos Pedaços
Já aqueles que acusam os chamados “filmes de arte” de serem propositalmente confusos, pretensiosos ou pseudointelectuais vão encontrar neste Aos Pedaços, de Ruy Guerra, um representante perfeito daquilo que mais detestam.
Para começar, o longa parece uma obra feita por estudante recém graduado de cinema que se entrega a tudo quanto é clichê estético e narrativo — como um chiaroscuro preto e branco de altíssimo contraste que visa recriar o visual de um filme noir, silhuetas em contraluz, a paranoia kafkiana de um protagonista que não sabe por que está sendo perseguido, uma narração solene e quase literária, duas mulheres cujas identidades se confundem no melhor estilo de Cidade dos Sonhos (2001), e por aí vai.
Pior é que todo esse óbvio esforço estético e simbólico parece não servir para nada, já que o roteiro — escrito por Guerra e Luciana Mazzotti — é de uma estupidez colossal. O protagonista é Eurico Cruz (Emílio de Mello), que acorda virado uma certa manhã e é induzido por um misterioso bilhete a acreditar que uma de suas duas esposas quer matá-lo. A partir daí, o filme se entrega à pior das autoindulgências ao nos forçar a acompanhar os aparentes delírios de um sujeito alcóolatra e esquizofrênico — e a “revelação” final só vai surpreender alguém que nunca tiver visto um filme na vida.
Mais irritante é o fato de este ser um personagem vazio e desinteressante que muda de pensamento como quem muda de roupa, enquanto seu irmão Heleno (Julio Adrião) surge como um pastor evangélico que recita versículos da Bíblia que não fazem diferença alguma para o contexto — e posso apostar que o diretor tinha Tom Waits na cabeça quando concebeu esse sujeito tocando piano e vestindo preto e chapéu. Quanto às esposas de Eurico, suas personalidades pouco importam, já que elas passam o filme inteiro agindo de maneira aleatória e soltando frases sem pé nem cabeça.
Os diálogos, aliás, são praticamente todos assim, como que saídos dos sonhos delirantes de um demente (e mesmo que seja essa a intenção, há formas bem mais eficazes de nos fazer dividir os pensamentos desconexos de um psicótico do que o que vemos aqui), com direito a falas sem sentido e jogadas ao vento como “amo uma ausência que vive dentro de mim como um carrapato”, ou “tubarões tristes são os mais perigosos”.
Assim, ainda que haja um ou outro plano inspirado (como um que parece visto através de um vidro fosco e que permite que uma mulher se torne a outra diante de nossos olhos), até mesmo a interessante representação física dos demônios internos do protagonista acaba soando banal. E todo esse simbolismo de quinta categoria (aliado a um teatralismo exagerado) se torna uma tortura até para os espectadores mais pacientes.
Matar a un Muerto
O paraguaio Matar a un Muerto, de Hugo Giménez, se passa em 1978, durante a ditadura de Alfredo Stroessner no país e no ano da Copa do Mundo da Argentina. Acompanhamos dois homens, Pastor (Ever Enciso) e Dionísio (Aníbal Ortiz), que conversam em um idioma indígena e trabalham enterrando cadáveres ilicitamente no meio da floresta. Um dia, eles encontram um homem que ainda está vivo e Dionísio decide não o matar como deveria, o que dá início a uma crise entre esses homens.
Por mais que o roteiro (escrito pelo próprio Giménez) se esforce em explorar o conflito psicológico de quem é levado por um regime a tirar a vida de um ser humano, o filme carece terrivelmente de coesão, já que se vale de elementos que surgem dispersos e não se somam — como a própria Copa do Mundo e a existência de um animal solto pela floresta (cujo simbolismo, se há algum, me escapa). Também, as motivações dos três personagens são rasas e mal exploradas, impedindo que compreendamos por que agem como agem e que nos importemos com o que quer que aconteça com eles.
Como se não bastasse, Giménez ainda adota uma abordagem visualmente cansativa, com passagens longas e lentas em que praticamente nada acontece — e mesmo a cena em que um superior militar surge na floresta acaba soando como tentativa barata de gerar tensão, falhando miseravelmente. Pior é notar que qualquer tentativa de comentário específico sobre os horrores da ditadura paraguaia se perde no meio desse desastre, visto que, a rigor, o filme poderia se passar em qualquer lugar ou época.