Terceiro dia de cobertura do 48o Festival de Cinema de Gramado com críticas dos curtas Atordoado, Eu Permaneço Atento e Blackout e dos longas Um Animal Amarelo e Dias de Invierno
Atordoado, Eu Permaneço Atento
O primeiro (e melhor) curta do terceiro dia da 48ª edição do Festival de Gramado foi este atordoante e necessário Atordoado, Eu Permaneço Atento, de Henrique Amud e Lucas H. Rossi dos Santos. Com um belo título, o documentário se põe a ouvir o que o jornalista e cientista político Dermi Azevedo tem a dizer sobre suas traumáticas experiências com a ditadura militar e o atual estado em que o Brasil se encontra — que vem guardando uma preocupante semelhança com a terrível mentalidade dos algozes daquela época.
Enquanto o ouvimos em um monólogo de quase 15 minutos, os diretores exibem imagens de arquivo que vão desde vislumbres dos movimentos estudantis e confrontos nas ruas até fotografias do jornalista daquela época. São imagens obtidas de diversas fontes e em diversas formas: filme, vídeo, com diferentes relações de aspecto, cores, texturas e danos que, combinados com sons desarmônicos e incômodos, parecem traduzir a atmosfera de uma história tão profundamente danificada pelo fascismo.
A grande força do curta é o próprio Dermi, que escreveu o livro “Infância Roubada” (produzido pela Comissão Nacional da Verdade) e aqui discute abertamente não só a tortura que sofreu, mas também a de seu filho Carlos Alexandre, que foi abominavelmente torturado com apenas um ano e oito meses de idade e suicidou-se em 2013 depois de uma vida de lesões psicológicas que nunca conseguiu superar.
O tom de voz do jornalista é desolador, e sua eloquência o suficiente para prender a nossa atenção do início ao fim, principalmente quando diz o que deveria ser óbvio para todos os seres humanos, mas que nem o atual presidente nem seus apoiadores têm o caráter de defender: que ninguém no mundo, por pior que seja, merece o horror de ser torturado, e que “nenhuma pessoa deveria se orgulhar com a tortura dos outros”.
Essa falta de consciência e pouca compreensão, como ele aponta, é um sintoma da perda de memória que o Brasil enfrenta conforme permite que seus torturadores permaneçam livres, impunes e enaltecidos por deputados. E este curta se faz ainda mais belo por nos lembrar da importância da memória em vez do rancor e o ódio.
Blackout
Outro curta que fala de opressão é o carioca Blackout, de Rossandra Leone, que se passa no ano de 2048, quando uma hacker negra moradora da favela é presa e levada para ser interrogada em uma sala branca por um homem de preto. A diretora, também negra, busca expor o racismo institucional através da forma depreciativa como o sujeito a trata, rebaixando‑a sempre que pode e usando o discurso típico do vitimismo negro.
O esforço mostra que Leone sabe bem do que está falando e tem propriedade, mas o problema é que a atriz central (Adrielle Vieira) se entrega a um overacting tão exagerado que parece querer devorar o cenário inteiro. A direção amadora e o diálogo redundante e longo demais também não ajudam. Além disso, a conclusão acaba soando apenas rasa e tola com sua esperança distante, infelizmente.
Um Animal Amarelo
Assim como Todos os Mortos, também exibido pelo festival este ano, Um Animal Amarelo, de Felipe Bragança, é outra obra que parece desesperada para fazer tanta coisa que acaba por não fazer nada direito. A proposta — metalinguística e que evidentemente bebe da fonte de Joaquim Pedro de Andrade (a quem o diretor dedica seu filme nos créditos finais) e seu Macunaíma (1969) — é a de explorar a história e o passado colonial de um Brasil herdeiro em “um mundo tão destronado de tudo”, como diz a narradora moçambiquenha em tom solene ao próprio protagonista, o tal herdeiro brasileiro.
Esse tom solene (e autoimportante) ameaça entrar em choque com o caráter fabulesco antropofágico e “tragicômico” desta produção luso-brasileira que usa até animação stop motion em certos momentos. O enredo é até curioso, divido em cinco partes que seguem a jornada de seu anti-herói desde o nascimento dele (quando seu avô parte para visitá-lo e, ao retornar, se depara com seu amante moçambiquenho morto). 33 anos depois, Fernando (Higor Campagnaro) é um cineasta falido e atormentado por seu passado e por um espírito africano amarelo que o protege e devora quem cruza seu caminho.
A partir daí, o desajeitado e pedante protagonista parte para Moçambique em busca de si próprio, revelando-se um babaca mentiroso que só quer explorar as riquezas minerais do local para seu próprio proveito. A mensagem é clara, de que “os brasileiros são uma raça de mentirosos”, como é dito em um momento. Lá, ele conhece a narradora Catarina (Isabél Zuaa) e mais dois moçambiquenhos que o levam para Portugal para vender as pedras preciosas que eles conseguem defecar. E em Lisboa, Fernando ainda conhece uma louca que enche seus orifícios corporais de rubis reluzentes.
Parece confuso? Pois é. E o pior é que é tão difícil que nos importemos com o que acontece com um personagem tão antipático que esse seu desejo de “se encontrar” (ou algo do tipo) acaba soando como capricho de um diretor pretensioso — que, aliás, se entrega a uma tremenda autoindulgência ao usar um alter ego seu como representação clara do próprio país e ainda querer oferecer uma mensagem “revolucionária” sobre o vazio das imagens vomitadas em filmes (o que soa até contraditório).
Essa autoindulgência, aliás, chega ao ponto do sofrível com a quantidade de situações e cenas que surgem quase que de forma aleatória, como se tivessem sido incluídas de qualquer jeito sem terem sido pesadas antes. No final das contas, é um filme que parece tão perdido quanto seu insuportável protagonista.
Dias de Invierno
Com o título mais genérico que alguém poderia conceber, Dias de Invierno é um filminho inofensivo que gira em torno de um rapaz chamado Nestor (Miguel Narro) que mora com a mãe e trabalha como recepcionista noturno em uma cidade do norte do México, sem nunca ter concluído os estudos. Nestor sonha em ir morar nos Estados Unidos, mas por ser o filho mais novo e o único que não saiu de casa, se vê conflitado entre ir embora e deixar sua mãe sozinha, ainda mais quando ela é dispensada do emprego.
Parecendo querer explorar o tédio que é viver naquele lugar através de cenas aborrecidas e tempos mortos em que pouco acontece, o filme ainda introduz personagens secundários (como um americano desiludido e uma idosa que vive confundindo Nestor com seu irmão) que pouco oferecem e estão ali só para encher um roteiro pobre e sem substância. Além disso, há uma tentativa barata de criar drama a partir de um incidente com um carro quebrado no meio da estrada que no fim das contas não serve de nada.
Insistindo a todo momento em uma charada matemática como num esforço para oferecer algum tipo de profundidade simbólica a uma trama que não possui nenhuma, o filme não consegue nem mesmo pensar em um final que não seja banal e esquecível.