Segundo dia de cobertura do 48o Festival de Cinema de Gramado com críticas dos curtas Inabitável e Subsolo e dos longas Todos os Mortos e La Frontera

Em pri­mei­ro lugar, faço ques­tão de apon­tar o tra­ba­lho decep­ci­o­nan­te do Canal Bra­sil e do Fes­ti­val de Gra­ma­do ao adap­tar os fil­mes apre­sen­ta­dos para o for­ma­to da tele­vi­são, já que a qua­li­da­de do som de pelo menos duas obras (Sub­so­lo e Todos os Mor­tos) ficou com­pro­me­ti­da, com os sons de fun­do altos demais e se sobre­pon­do aos diá­lo­gos a pon­to de não se poder com­pre­en­der qua­se nada em vári­os momen­tos. Lamentável.

Inabitável

48º Festival de Cinema de Gramado
Divul­ga­ção / Fes­ti­val de Gramado

O pri­mei­ro cur­ta foi o per­nam­bu­ca­no Ina­bi­tá­vel, de Matheus Faria e Enock Car­va­lho, que come­ça bem. Nele, Mari­le­ne é uma mãe pre­o­cu­pa­da que pro­cu­ra sua filha trans, Rober­ta, que está sumi­da des­de o dia ante­ri­or. Ao per­gun­tar aos ami­gos dela sobre seu para­dei­ro, a ten­são que todos sen­tem de ime­di­a­to é um hábil refle­xo do peri­go que mulhe­res trans enfren­tam todo dia em um país como o Bra­sil, mais ain­da se forem negras.

A melhor qua­li­da­de do fil­me, aliás, é como nos leva a com­par­ti­lhar des­sa pre­o­cu­pa­ção por alguém que sabe­mos ter bem mais chan­ces de já estar mor­ta do que ain­da estar viva. E é con­for­tan­te ver como as per­so­na­gens — que inclu­em uma vizi­nha bran­ca de Mari­le­ne e uma ami­ga tam­bém trans de Rober­ta — se tra­tam com cari­nho e respeito.

No entan­to, os dire­to­res enve­re­dam por um cami­nho sobre­na­tu­ral que soa fácil e menos sig­ni­fi­ca­ti­vo do que acre­di­tam ser. Além dis­so, a infor­ma­ção de que a his­tó­ria se pas­sa no iní­cio de 2020 pou­co antes da pan­de­mia sur­ge gra­tui­ta, sem fazer dife­ren­ça algu­ma como con­tex­to espe­cí­fi­co. Mas o fil­me dá o seu recado.

Subsolo

Subsolo (curta)
Divul­ga­ção / Fes­ti­val de Gramado

O segun­do cur­ta, a leve ani­ma­ção gaú­cha Sub­so­lo, de Eri­ca Mara­do­na e Otto Guer­ra, é a úni­ca pro­du­ção que des­toa da temá­ti­ca comum da segun­da noi­te do fes­ti­val (todas as outras são foca­das em mino­ri­as). Aqui, três ami­gos que fre­quen­tam todo dia uma mes­ma aca­de­mia se vêem dian­te da pres­são de terem cor­pos ideais.

Vemos pes­so­as de diver­sos tipos e cores (lite­ral­men­te), de den­tes arre­ga­nha­dos e for­mas físi­cas exa­ge­ra­das, algo que só é pos­sí­vel de ser mos­tra­do des­sa manei­ra atra­vés de uma ani­ma­ção, e o fil­me sabe fazer gra­ça das obses­sões e dos ridí­cu­los de uma soci­e­da­de famin­ta por sel­fi­es e que bus­ca o cor­po per­fei­to a todo custo.

A com­pa­ra­ção com uma linha de pro­du­ção de car­ne no sub­so­lo do local é uma saca­da diver­ti­da, prin­ci­pal­men­te quan­do cria um para­le­lo entre as mar­cas dos ali­men­tos e das rou­pas que as per­so­na­gens usam. Diver­ti­da, mas não original.

Todos os Mortos 

Todos os Mortos (filme)
Divul­ga­ção / Fes­ti­val de Gramado

Escri­to e diri­gi­do por Cae­ta­no Gotar­do (O Que Se Move) e Mar­co Dutra (As Boas Manei­ras), o lon­ga pau­lis­ta Todos os Mor­tos — que pas­sou pelo Fes­ti­val de Ber­lim este ano e este­ve entre os sele­ci­o­na­dos para com­pe­tir pelo Urso de Ouro — tinha tudo para dar cer­to (espe­ci­al­men­te se levar­mos em con­ta o talen­to de seus rea­li­za­do­res) mas é um fil­me que infe­liz­men­te sofre de seu exces­so de ambi­ção temá­ti­ca e narrativa.

A tra­ma se pas­sa entre o final de 1899 e iní­cio de 1900, duran­te o pro­ces­so de tran­si­ção entre a abo­li­ção da escra­vi­dão (ocor­ri­da ape­nas 11 anos antes) e o perío­do da Repú­bli­ca, que des­pon­ta como uma nova era de mudan­ça. É nes­se con­tex­to que as três mulhe­res da famí­lia Soa­res — ex donos de ter­ras e escra­vos — se vêem per­di­das e sem chão após a mor­te de sua ex-escra­va Jose­fi­na (Alaí­de Cos­ta), que con­ti­nu­a­va tra­ba­lhan­do no casa­rão mes­mo com o fim da escra­vi­dão. Enquan­to isso, a ex-escra­va Iná (Mawu­si Tula­ni) vem a São Pau­lo com seu filho peque­no João (Agyei Augus­to) em bus­ca do pai do meni­no, que vie­ra dois anos antes em bus­ca de empre­go ago­ra que é livre.

Estru­tu­ra­do no tem­po com base em feri­a­dos naci­o­nais que refle­tem a his­tó­ria e cul­tu­ra do país (Inde­pen­dên­cia, Fina­dos, Natal e Car­na­val), o rotei­ro de Gotar­do e Dutra se lan­ça a desen­vol­ver as per­so­na­li­da­des de cada uma des­sas qua­tro per­so­na­gens de manei­ra a cons­truir um pai­nel de uma soci­e­da­de frag­men­ta­da em bus­ca de um cami­nho. O fio con­du­tor que une essas mulhe­res é o luto, tan­to das Soa­res (por sua deca­dên­cia e o fim de uma épo­ca que dá seus últi­mos sus­pi­ros) quan­to de Iná, que se cho­ca ao saber da mor­te de Jose­fi­na (por quem tinha afe­to) e ago­ra não sabe para onde ir.

Porém, o gran­de pro­ble­ma do rotei­ro resi­de jus­ta­men­te em sua inca­pa­ci­da­de de se deci­dir quem é a sua pro­ta­go­nis­ta. Por exclu­são, ima­gi­no que deva ser Iná, mas nun­ca fica cla­ro, e o foco nar­ra­ti­vo é difu­so, já que o fil­me se esfor­ça em dar tem­po de tela a todas essas mulhe­res como se bus­cas­se explo­rar todas as face­tas de suas rela­ções sociais.

Temos a matri­a­ca Isa­bel (Thaia Perez), ido­sa e de saú­de frá­gil, e suas filhas Maria (Cla­ris­sa Kis­te), uma frei­ra cató­li­ca que ensi­na cri­an­ças, e Ana (Caro­li­na Bian­chi), uma moça men­tal­men­te per­tur­ba­da que cos­tu­ma ver fan­tas­mas de escra­vos mor­tos ron­dan­do a casa. Evi­den­te­men­te, há uma pre­o­cu­pa­ção do fil­me em tor­nar essas mulhe­res dife­ren­tes repre­sen­ta­ções de uma era obso­le­ta que se encon­tra à bei­ra do esque­ci­men­to, seja atra­vés da resig­na­ção dian­te do seu ine­vi­tá­vel fim (Isa­bel), seja na into­le­rân­cia dian­te daqui­lo que não conhe­ce (Maria), seja ain­da pela von­ta­de de enter­rar o pas­sa­do e silen­ci­ar as vozes que não que­rem se calar (Ana).

Já Iná, que sur­ge como a bús­so­la moral do fil­me, pare­ce ain­da pre­sa à sua anti­ga vida de escra­va e não sabe mais quem é, alter­nan­do entre aqui­lo a que era acos­tu­ma­da (como ao se refe­rir à sua anti­ga dona como “Sinhá Ana”) e um dese­jo de redes­co­brir suas raí­zes (ele diz nem se lem­brar mais da lín­gua de seus ante­pas­sa­dos). É inclu­si­ve a ela que cabe retru­car os comen­tá­ri­os into­le­ran­tes de Isa­bel, Maria e Ana — como quan­do Ana fica con­fu­sa ao ouvir que há nações afri­ca­nas dife­ren­tes e Iná lhe diz que “a Áfri­ca é gran­de”, ou quan­do Maria com­pa­ra os ritu­ais dos escra­vos a invo­ca­ções de demônios.

(Tam­bém inte­res­san­te é notar como o belo e cul­to “mes­ti­ço” Edu­ar­do (Tho­más Aqui­no), flho de um por­tu­guês com uma escra­va, se esfor­ça para con­quis­tar Ana e se sen­te pre­te­ri­do ao ouvir que ela pre­fe­re o bei­jo de um ope­rá­rio bran­co, o que reve­la mui­to sobre sua frus­tra­ção dian­te da impos­si­bi­li­da­de de não ser enxer­ga­do por sua cor.)

Aliás, o fil­me atin­ge seu ápi­ce quan­do Iná sur­ge no casa­rão em bus­ca de João. O diá­lo­go é impe­cá­vel e sur­pre­en­de por suas cama­das, des­de o cho­que de Maria ao ver a ex-escra­va entrar pela por­ta da fren­te até a con­des­cên­cia de Isa­bel, que diz com­pre­en­der que os tem­pos ago­ra são outros e que elas podem “aju­dar o rapaz” (como se ele fos­se defi­ci­en­te), ter­mi­nan­do por dizer que “o quar­to de Jose­fi­na segue livre” com uma ceguei­ra típi­ca de quem não quer enxer­gar que as coi­sas real­men­te mudaram.

Essa rigi­dez moral da famí­lia é refle­ti­da no design de pro­du­ção, que faz um belo tra­ba­lho de recons­ti­tui­ção de épo­ca, espe­ci­al­men­te no casa­rão da famí­lia com sua mobí­lia aus­te­ra de madei­ra escu­ra, seus vitrais, mui­tos qua­dros e cru­ci­fi­xos para todo lado. A foto­gra­fia tam­bém aju­da a cri­ar uma atmos­fe­ra lúgu­bre aqui e ali com seus pla­nos penum­bro­sos ilu­mi­na­dos ape­nas por velas, tochas e lamparinas.

Ain­da assim, ape­sar de todas essas qua­li­da­des, Todos os Mor­tos por pou­co não sucum­be sob o peso de suas ambi­ções, não só qua­se se per­den­do em meio a tan­tas his­tó­ri­as e per­so­na­gens como tam­bém que­ren­do abor­dar coi­sa demais e dan­do a impres­são de não saber quan­do e onde ter­mi­nar. Há pelo menos três cenas no final que pode­ri­am encer­rar o fil­me de for­ma satis­fa­tó­ria, mas a von­ta­de de ela­bo­rar além da con­ta é tama­nha que nem mes­mo as boas inten­ções con­se­guem com­pen­sar todo o esforço.

La Frontera

La Frontera (filme)
Divul­ga­ção / Fes­ti­val de Gramado

O últi­mo fil­me da noi­te foi o colom­bi­a­no La Fron­te­ra, de David David, que tam­bém tem boas inten­ções, mas não as exe­cu­ta mui­to bem. A tra­ma se pas­sa em uma área rural na fron­tei­ra entre a Colôm­bia e a Vene­zu­e­la, em um con­tex­to de cri­se entre os dois paí­ses (a Vene­zu­e­la aca­ba de fechar a fron­tei­ra com a Colôm­bia por um perío­do de 72 horas). Dia­na (Day­lin Vega More­no) é uma jovem indí­ge­na pres­tes a dar à luz que vive com seu mari­do e seu irmão, rou­ban­do à mão arma­da os via­jan­tes que pas­sam por ali.

O dire­tor faz um bom tra­ba­lho ao tomar seu tem­po no iní­cio do fil­me para nos mos­trar o cari­nho que Dia­na e seu mari­do tem um pelo outro, o que se tor­na essen­ci­al para que nos impor­te­mos com eles. Assim, quan­do o mari­do e o irmão da pro­ta­go­nis­ta somem, nos api­e­da­mos da garo­ta, que se vê sozi­nha e entre­gue à pró­pria sor­te sem saber o que fazer. Mas não demo­ra mui­to para que um homem cha­ma­do Miguel (Ale­jan­dro Agui­lar) sur­ja feri­do em sua casa à pro­cu­ra de abri­go, segui­do da fala­dei­ra e intru­si­va Cha­lis (Shei­la Mon­te­ro­la), que afir­ma ter sido rou­ba­da na estrada.

E é aí que acom­pa­nha­mos a rela­ção que se desen­vol­ve entre esses per­so­na­gens, em uma evi­den­te ten­ta­ti­va de mos­trar como pes­so­as tão dife­ren­tes podem se aju­dar inde­pen­den­te de fron­tei­ras e bar­rei­ras soci­ais. Essa men­sa­gem é ain­da refor­ça­da por notí­ci­as de rádio em que ouvi­mos sobre o con­fli­to entre os dois paí­ses e a ima­gem de Trump na TV a res­pei­to de suas depor­ta­ções. Enquan­to isso, a dire­ção de David David é sim­ples e dire­ta (ape­sar dos sonhos sur­re­ais de Dia­na, que são mais dis­pen­sá­veis do que sig­ni­fi­can­tes), com um foco mai­or nos per­so­na­gens e em suas ações.

Essas ações, por sua vez, aca­bam por reve­lar mais que os diá­lo­gos, como quan­do Dia­na fica visi­vel­men­te inco­mo­da­da com o fato de Miguel ter uma namo­ra­da ou quan­do a vemos encan­ta­da ao ouvir falar da cida­de, que ela nun­ca conhe­ceu. Depois de um cer­to tem­po, porém, o fil­me come­ça a ficar um tan­to abor­re­ci­do, sem mui­to a ofe­re­cer além de um final que é de fato impac­tan­te. O que é uma pena.

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