Primeiro dia de cobertura do 48o Festival de Cinema de Gramado com críticas dos curtas 4 Bilhões de Infinitos e Receita de Caranguejo e dos longas Por Que Você Não Chora? e El Silencio del Cazador
Este ano, devido à pandemia do COVID-19, o Festival de Cinema de Gramado que ocorre entre os dias 18 e 26 de setembro é exibido via streaming e na televisão pelo Canal Brasil (confira a programação no site oficial do evento). São quatro filmes por dia da mostra competitiva que podem ser vistos pelo Canal Brasil a partir das 20 horas, sendo eles dois curta-metragens brasileiros, um longa-metragem brasileiro e um estrangeiro.
4 Bilhões de Infinitos
O primeiro curta exibido no primeiro dia do festival foi o mineiro 4 Bilhões de Infinitos, do diretor Marco Antônio Pereira, que já havia levado para casa o Kikito de melhor roteiro em 2018 pelo curta A Retirada para um Coração Bruto. Aqui, o cineasta busca explorar os sonhos e esperanças de duas crianças que vivem sem eletricidade em casa desde a morte do pai, no município de Cordisburgo, Minas Gerais. Enquanto a mãe trabalha fora, os dois sonham com carros e videogames que outros têm e eles não.
O filme se beneficia da espontaneidade de seus atores-mirins, mas peca pelo diálogo geralmente engessado e artificial sobre um dia terem uma vida melhor se permanecerem juntos para sempre. Um esforço sensível que infelizmente cai no lugar-comum.
Receita de Caranguejo
Seguindo uma linha temática comum, o curta seguinte, o paulista Receita de Caranguejo de Issis Valenzuela, também explora a relação de duas pessoas (neste caso, mãe e filha) após a morte do pai. As duas, que não parecem muito próximas, vão passar uns dias na praia e comer caranguejos, e é então que o filme assume um tom incômodo à medida que os pensamentos da garota (que acabou de menstruar pela primeira vez, ao que parece) se confundem com imagens difusas e surreais das pobres criaturas.
Valenzuela cria uma sensação até desagradável enquanto acompanhamos o processo de limpeza e cozimento dos animais (bem cruel, aliás), como se a menina se identificasse com os bichos ou algo do tipo. Os sons se tornam dissonantes, efeitos luminosos surgem na água do mar e a atitude blasé da mãe contribui para o nosso incômodo. No entanto, a impressão que fica é que a diretora não consegue se fazer clara, ou mesmo que nem sabe o que quer dizer. O final é apenas anticlimático.
Por Que Você Não Chora?
O primeiro longa brasileiro da mostra foi o brasiliense Por Que Você Não Chora?, de Cibele Amaral. Baseado em histórias reais, o filme discute o delicado tema do suicídio a partir de duas personagens bem distintas. A protagonista é a estudante e estagiária de psicologia Jéssica (Carolina Monte Rosa), que recebe a tarefa de oferecer acompanhamento terapêutico a Bárbara (Bárbara Paz), uma mulher instável que sofre de transtorno de personalidade borderline. À medida que passam a dividir o tempo juntas, suas personalidades entram em choque e elas desenvolvem um relacionamento de codependência emocional que pode se tornar tanto saudável quanto nocivo para as duas.
A diretora, que também assina o roteiro, parece a princípio ter uma certa dificuldade em diferenciar depressão, transtornos de personalidade e tendências suicidas, como se tudo fizesse parte do mesmo quadro clínico, ainda que nem toda pessoa que sofra de transtorno borderline tenha vontade de se matar. Por outro lado, há uma preocupação sincera em abordar os distúrbios psicológicos de cada uma das personagens.
Interpretada com sensibilidade por Carolina Monte Rosa, Jéssica é apresentada como uma mulher extremamente fechada, de aparência apática, austera e rígida, que tem pesadelos recorrentes com muita água (um elemento geralmente associado a lágrimas e emoções intensas) e com uma infância distante e turva. Percebemos que ela sofre de depressão e morre de preocupação que sua irmã mais nova Joice (que alterna entre a sua casa e a de seus pais) seja uma nova versão dela, eternamente cabisbaixa e sem amigos.
Já Bárbara Paz contrapõe a personalidade de Jéssica com a expansividade marcante de Bárbara, uma mulher dada a oscilações extremas de humor e desesperada para ter de volta a guarda do filho. Por mais que temamos as consequências da instabilidade emocional e psicológica da personagem, nos simpatizamos com o seu incômodo diante do julgamento dos outros e a sua dificuldade em parecer uma mãe normal para seu filho. Essas complexidades representam um tour de force para a atriz.
Além disso, Amaral realiza um excelente trabalho na direção ao traduzir visualmente as conturbações dessas mulheres, que acabam por se apoiar emocionalmente uma na outra por não saberem lidar com seus problemas e sair do poço. A monotonia da vida de Jéssica surge azulada em tela, através de planos que se repetem e uma fotografia carregada da cor azul, além de um design de produção que abusa do azul por todo lado, inclusive na casa dos pais da personagem que nos remete aos pesadelos relacionados à sua infância. Tudo isso gera no espectador uma sensação sufocante e opressora, enfatizada por ruídos repetidos de batidas que aumentam junto com a sensação de rejeição de Jéssica.
Bárbara, em contrapartida, aparece geralmente vestindo amarelo, o que reflete a sua expansividade. Conforme as personalidades das duas vão se influenciando, as cores que vestem (azul e amarelo) vão se misturando, enquanto o vermelho surge pontualmente nos momentos em que Jéssica se vê ameaçada. Também interessante é notar como que a protagonista percebe uma goteira que pinga em seu rosto sempre que desperta de seus pesadelos e só consegue pensar em usar um copinho para impedir que a água molhe a cama, em uma clara representação de como evita encarar a raiz de seus problemas.
O mérito do filme, aliás, reside justamente na maneira como aborda a incapacidade da personagem de procurar ajuda profissional, mesmo ela sendo uma. Acompanhamos duas mulheres aprisionadas em seus transtornos (a imagem de um berço com barras que remetem a grades é bem simbólica) e que apenas precisam de alguém que as ouça, apesar de terem dificuldade de expressar esse desejo. Inclusive, Jéssica se revela uma péssima profissional, mas a sua presença já ajuda a trazer consolo a Bárbara.
No fim das contas, quando um momento de consolo se esvai para uma pessoa que sofre de depressão e ela se vê engolida de volta para o vazio, às vezes fugir pode ser a única alternativa que resta. E o que é o suicídio, afinal, senão uma fuga desesperada?
El Silencio del Cazador
O segundo longa da noite foi o argentino El Silencio del Cazador, de Martin Desalvo, um drama bem mais direto que o anterior. Nele, acompanhamos três personagens: Guzmán (Pablo Echarri), um guarda florestal que patrulha as montanhas de um parque nacional à procura de caçadores ilegais, Sara (Mora Recalde), uma médica rural casada com ele, e Orlando Venneck (Alberto Ammann), mais conhecido como Polaco, filho carismático de um colono da região e que adora caçar no parque contra a vontade de Guzmán.
O roteiro de Francisco Kosterlitz é ábil em não oferecer as informações da trama de uma vez, optando por nos permitir entrever aos poucos quem são essas pessoas e as relações entre elas. Um ponto positivo é como filme desenvolve a personalidade de cada um dos dois homens. Guzmán, por exemplo, é mostrado como um sujeito obstinado que ressente a relação da esposa com o Polaco e tenta usar de sua autoridade para se ver livre de seu rival (além de esconder um ressentimento pelo seu pai ter sido empregado do outro).
Já o Polaco foge da imagem do antagonista teimoso e inconsequente devido ao carinho que vemos das pessoas daquele lugar por ele (que beira inclusive à condescendência) e ao demonstrar uma preocupação genuína por um homem que ele fere acidentalmente. Além disso, Ammann confere um magnetismo ao personagem que o torna mais simpático que Guzmán para o espectador, o que fica ainda mais potente graças à boa química do ator com Recalde — uma química tão boa quanto à de Recalde com Echarri, o que contribui para deixar a rivalidade entre os dois homens mais palpável.
E o incidente que leva a um conflito entre eles é o surgimento de um tigre (ou um jaguar) que anda destroçando animais na floresta. O diretor prefere focar o máximo no enredo, utilizando uma abordagem visual naturalista que lembra o cinema dos irmãos Dardenne, com muita câmera na mão, planos mais longos que o comum e uma estética que busca não distrair o espectador do principal, que é a trama. O embate segue a linha típica dos dois machos viris que vão às últimas consequências. O resultado, ainda que eficiente, não oferece muito além disso nem impressiona.